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Artigo / Serviço Social

Libertas, Juiz de Fora, v.4, n.1, p. 78 - 104, jul-dez / 2009 – ISSN 1980-8518
SERVIÇO SOCIAL E CULTURA: CONSIDERAÇÕES ACERCA DAS CONCEPÇÕES
DE CULTURA NA TRAJETÓRIA DA PROFISSÃO NO BRASIL DESDE A SUA
GÊNESE ATÉ OS ANOS 1990

Carina Moljo*
Ariane Monteiro Cunha**


RESUMO
_____________________________________________________________________________________
      O presente artigo realiza uma reconstrução históricocrítica, embasada na perspectiva marxiana, sobre as
diferentes concepções de cultura presentes na trajetória histórica do Serviço Social no Brasil e como este
vem  se  apropriando  das  mesmas.  Abordaremos  a  relação  que  o  Serviço  Social  estabeleceu  com  a
dimensão da cultura na sua trajetória histórica, de 1930 a 1990, desvelando os processos que constituem a
cultura, analisando suas concepções e destacando sua influência na história do Serviço Social no Brasil.
     Palavras-Chave: Serviço Social, Cultura, História

INTRODUÇÃO

Existe certo consenso de que o Serviço Social, enquanto profissão, emerge no Brasil, na década de 1930, como uma especialização do trabalho coletivo inserido na divisão sócio técnica do trabalho e de que, na sua intervenção, dá respostas tanto para as classes com as quais trabalha como para as classes que contratam seus serviços (IAMAMOTO, 1982). Entretanto,  se  este  é  o  caminho  metodológico  que  realizamos  hoje  para  conhecer  a profissão, quer dizer, se hoje compreendemos que a profissão somente pode ser compreendida a partir  da  sua  inserção  nas  relações  sociais,  na  totalidade  maior  onde  ela  se  movimenta,  nem sempre foi assim. Esta forma de abordar a profissão – que evidentemente se inscreve dentro de uma  matriz  de  pensamento,  aquela  inaugurada  com  Karl  Marx  (18181883)  –  começa  a  ser hegemônica  no  Brasil  a  partir  da  década  de  1980,  fruto  da  renovação  sob  a  perspectiva  da
intenção de ruptura, que se processava desde finais da década de 1960 (NETTO, 1996).

_______________
* Prof. Adjunta da Fac. Serviço Social/UFJFMG. ** Assistente Social graduada na FSS/UFJFMG..

Anteriores a este período existiam outras matrizes de pensamento que eram hegemônicas no Serviço Social, tendo uma visão cronológica da história da profissão, como sucessão de fatos, baseados principalmente no positivismo nas suas diferentes versões.Como já  mencionamos,  será somente a partir da década de 1980, portanto, num  curto período histórico, que a forma de compreender a profissão, assim como seu significado histórico e as implicações da intervenção profissional se transformará radicalmente. Como explica Yazbek
(2000), para compreender a profissão será preciso, inserila no movimento histórico da sociedade,
que é produto das relações sociais:
(...) nesta perspectiva, a reprodução das relações sociais é entendida como a reprodução da totalidade da vida social, o que engloba não apenas a reprodução da vida material e do modo de reprodução, mas também a reprodução espiritual da sociedade e das formas de consciência social, através das quais o homem se
posiciona na vida social . Dessa forma, a reprodução das relações sociais é a reprodução de determinado modo de vida, do cotidiano, de valores, de práticas culturais e políticas e do modo como se produzem as idéias nessa sociedade.
Idéias que se expressam em práticas sociais, políticas, culturais e padrões de comportamento  e  que  acabam  por  permear  toda  a  trama  de  relações  da sociedade (YAZBEK, 2000, p.89) O Serviço Social, ao trabalhar com as classes trabalhadoras – ou como diria Yazbek com as classes subalternas – no seu viver cotidiano, sempre interveio nas formas de organizar os seus costumes, os seus modos de vida, seja de forma direta ou indireta, mas, nem sempre teve uma compreensão teórica sobre este ‘agir’. Esta visão da ação profissional mencionada pela autora supracitada  considera  como  parte  da atuação  do  assistente  social  o  que  costuma  ser  denominado  como  ‘mundo  da cultura’¹.
Dada  a  relevância  e  pertinência  do  tema  para  os  assistentes  sociais  e  na  tentativa  de desenvolver e incitar o debate acerca das relações entre o Serviço Social e a cultura, neste artigo2 realizamos uma aproximação de como o Serviço Social, na sua trajetória histórica, se aproximou das concepções de cultura, partindo da sua emergência até a década de 1990.
Para  a  análise,  dividimos  o  referido  artigo  em  cinco  pontos.  No  primeiro  ponto, apresentamos as diferentes concepções de cultura presentes no Serviço Social de uma forma mais geral. No segundo ponto, trabalhamos sobre as concepções de cultura presentes na gênese do  Serviço Social, sobretudo sobre a influência do positivismo. No terceiro ponto, trabalhamos sobre a  década  de  1950  até  o  golpe  militar  de  1964,  analisando  a  influência  das  vertentes desenvolvimentistas.  No  quarto  ponto,  nos  debruçamos  sobre  as  concepções  de  cultura imperantes  no  Serviço  Social,  no  período  da  ditadura  militar,  considerando  as  limitações colocadas pela Doutrina de Segurança Nacional. No quinto ponto, trabalhamos sobre o período da transição democrática até finais dos anos 1990.
Finalmente, realizamos algumas considerações gerais sobre a nossa questão central que é analisar  como  o  Serviço  Social,  no  seu  percurso  histórico,  se  aproximou  das  diferentes concepções  de  cultura.  Como  mostraremos  a  seguir,  não  separamos  a  esfera  da  cultura  das demais esferas de vida social. Entretanto, nossa preocupação está centrada em analisar a esfera de cultura e as suas características, sem, por isto, isolála das demais.

CONSIDERAÇÕES SOBRE CONCEPÇÕES DE CULTURA PRESENTE NA
TRAJETÓRIA DA PROFISSÃO NO BRASIL
Falar  em  ‘cultura’  enquanto  categoria  analítica  requer  alguns  cuidados.  A  princípio, devemos considerar que esta categoria apresenta várias concepções. Esta vem mudando com o passar do tempo, além de mudar dependendo da matriz teórica na qual se referencia. Mas, todos concordam que é o homem quem produz ‘cultura’. Na nossa concepção, o homem é um sujeito histórico,  um  ser  humanogenérico,  que  produz  e  se  reproduz  em  condições  determinadas, históricas,  inserido  numa  determinada  classe  social.  É  este  homem  concreto  o  que  produz  a cultura, que possui uma visão de mundo, que se transforma e transforma a realidade na qual age.
Do mesmo modo, entendemos que a cultura não é estática, esta se transforma no próprio agir do homem, se transforma no processo histórico.
De acordo com Bezerra (2006), a cultura surge como esfera determinada pelo trabalho, construída como a manifestação da consciência social, só sendo possível se considerarmos uma imensa rede de relações produtivas que se estabelecem em um determinado momento histórico.
Dessa  maneira,  cada  forma  diferenciada  de  organização  do  trabalho  e  da  vida  material corresponde a um universo cultural equivalente.
Segundo Williams (1992), a palavra cultura é de origem romana, oriunda da expressão latina  colere,  cujo  significado  relacionase  ao  cultivo,  cuidado  e  trabalho  do  homem  com  a natureza para preservála e tornála passível de habitação humana.
Posteriormente, estendeuse também ao cuidado com os deuses e com tudo que lhes diz respeito. Dessa forma, o avanço no trato com a palavra cultura implicou também em cultivo do espírito, através das expressões excolere animum (animar o espírito)  e  cultura animi (espírito cultivado)  (ARENDT,  1972).  A  última  conotação  passou  a  ser  usada  como  sinônimo  de refinamento, educação e sofisticação pessoal, e esta  foi a perspectiva que, durante muito tempo, deu maior conotação a palavra cultura.ALENCAR (1994) sinaliza que uma grande mudança se processa a partir da metade do século XVIII, junto à instauração das sociedades modernas, relacionando a categoria cultura com ‘cultura de alguma coisa’, ampliando o significado da mesma.
Por outro lado, cultura surgirá nesse período articulada à civilização, que exprimiria um estágio superior de desenvolvimento históricosocial, opondose a barbárie. Civilização interliga se  à  noção  de  progresso  com  um  sentido  figurado  designando  a  cultura  de  uma  faculdade humana,  isto  é,  o  fato  de  que  era  possível  trabalhar  intelectualmente  para  desenvolvêla3
(BEZERRA, 2006).
Com o surgimento da antropologia, ocorreu um resgate do termo cultura para designar os modos de vida e costumes de um povo, destacando as formas padronizadas de comportamento.  A antropologia  opera  com  um  conceito  de  cultura  referente  aos  aspectos  que  peculiarizam  a existência social de um povo, nação e até mesmo de grupos sociais. É um conceito amplo porque trata da totalidade das características de uma realidade social, comportando aspectos materiais e simbólicos (ALENCAR, 1994).
  Com  a  sociologia,  adveio  a  abordagem  que  remete  à  categoria  cultura  a  dimensão  do onhecimento que a sociedade tem sobre si mesma e suas formas de expressão, como é o caso da arte,  literatura,  ciência,  linguagem,  etc.  Esta  concepção  preocupase  em  resgatar  a  riqueza, pluralidade e diversidade das manifestações e elaborações dos indivíduos na práxis criadora. Segundo  Williams  (1992),  Johann  Gottfried  Herder  foi  o  primeiro  a  empregar  o significado  plural,  ‘culturas’,  para  diferenciálo  de  qualquer  sentido  singular  ou  unilinear  de civilização, o qual aponta para uma diversidade de culturas, onde cada cultura exprime parte da riqueza de toda a humanidade (BEZERRA, 2006). Assim, podese concluir que, nesse contexto ampliado,  cultura  significa  um  “conjunto  de  conquistas  artísticas,  intelectuais4  e  morais  que constituem o patrimônio de uma nação considerado como adquirido definitivamente e fundador de sua unidade.” (CUCHE, 1999 apud BEZERRA, 2006).
  Williams (1992, p.13) define a cultura como um sistema de significações, “mediante o qual necessariamente uma dada ordem social é comunicada, reproduzida, vivenciada e estudada”, podendo afirmar que a cultura não constitui uma dimensão ‘ideal’ onde são produzidas as outras atividades sociais, mas forma parte essencial de todas as atividades da vida social. Portanto, a cultura pode ser compreendida como práticas significativas da totalidade de uma forma de vida, com caráter dinâmico, ativo e histórico, como o movimento das experiências de vida, pois ela apreende estruturas de relações de sujeitos experimentando e vivendo suas condições de vida.
Cultura passa a ser vista, então, como uma classificação geral de instituições e práticas que,  embora  sociais,  constituíam  significados  e  valores  simbólicos  de  uma  dada sociedade. Este é o sentido de cultura como um ‘modo de vida’, no interior do qual se constrói  a  subjetividade  e  o  processo  criativo  de  resposta  às  necessidades  coletivas
(BEZERRA, 2006, p. 36).
Assim,  a  ‘cultura’  é  entendida  como  parte  da  totalidade  social,  inserida  na  trama  de relações sociais. Nesta perspectiva, a  cultura  é,  portanto,  o  espaço  dinâmico  no  qual  a  consciência  social  constrói  este conhecimento e esta reflexão acerca da realidade histórica passada, presente e futura, onde o homem se percebe com novas necessidades e desafios para além da intervenção sobre  a  natureza.  É  um  espaço  de  mediação,  de  intencionalidade,  de  construção  de novas demandas coletivas a serem atendidas pela atividade produtiva. Os homens, ao desenvolverem  sua  produção  e  seu  intercâmbio  material,  constroem  sua  cultura.  Ao mesmo tempo, mudam a natureza, mudam sua constituição enquanto ser social, mudam
seu pensamento e os produtos deste pensamento. Fazem e refazem permanentemente sua cultura e, conseqüentemente, toda sua vida em sociedade.
A  cultura  constitui,  assim,  a  resposta  a  necessidades  e  imperativos  humanos  não ligados, única e necessariamente, à sua reprodução física. Remete, portanto, ao aspecto da  vida  social  concretizado  no  plano  da  práxis  interativa,  da  relação  com  os  outros homens  e  das  construções  coletivas processadas  através  desta  relação  (BEZERRA, 2006, p. 4546).
É dessa concepção de cultura, mais ampla e que visa à totalidade, que nos apropriamos para analisar tal categoria e sua relação com o Serviço Social brasileiro. É correto afirmar que, desde a profissionalização do Serviço Social, este trabalha com a dimensão da cultura, sobretudo como  ‘moralização  dos  pobres’,  trabalhando  na  mudança de  hábitos  e,  na  maioria  das vezes, penalizandoos pela condição de pobreza; será somente a partir da década de 1950 do século XX, que a cultura – enquanto categoria analítica – começará a ser debatida, especialmente a partir da influência do Serviço Social de Comunidade (MOLJO, 2007).
Neste contexto, o assistente social passa a tomar consciência da importância de conhecer os  costumes,  os  modos  de  vida,  ou  seja,  a  cultura  dos  povos  ou  comunidades  com  os  quais trabalha para modernizar os traços culturais dos mesmos.  Foi a partir daqui, que se compreendeu que  a  categoria  cultura  é  de  extrema  importância  para  a  análise  da  profissão,  “seja  para  a intervenção do  assistente social, para o  conhecimento dos sujeitos com os quais trabalhamos, bem como para a compreensão da realidade concreta” (MOLJO, 2008, p.13).
  O Serviço Social enquanto profissão voltada para a intervenção na realidade social, que compreende o homem enquanto ser humano genérico deve considerar os aspectos culturais dos mesmos,  já  que  são  estes  que  compõem  a  sua  vida particular  e  social.  Na  medida  em  que  o homem constrói a sua vida e a sua história, constrói a história da humanidade e na medida em que se transforma, também transforma a sociedade.
  Assim, “refletir sobre a cultura implica ter um olhar crítico sobre a realidade, visando à ruptura
das condições estabelecidas, nas quais se reproduzem à exploração e a dominação. A cultura  é  a  capacidade  de  decifrar  as  formas  de  produção  social  da  memória  e  do esquecimento, das experiências, das idéias e dos valores” (CHAUÍ, 2006, p. 08).

 O PERÍODO DE 1930: A GÊNESE DO SERVIÇO SOCIAL
  No Brasil, o Serviço Social emerge em meados dos anos 1930, como uma especialização do  trabalho  coletivo  e  inserido  na  divisão  sóciotécnica  do  trabalho,  procurando  responder  a demandas concretas, colocadas tanto pelo Estado quanto pela classe trabalhadora (IAMAMOTO, 1982).   Netto  (1996)  expôs  as  particularidades  históricoconcretas  do  surgimento  do  Serviço Social como profissão, mostrando que a sua gênese está relacionada aos processos econômicos, políticos e sociais constituídos no capitalismo monopolista. O Serviço Social, enquanto profissão, é  perpassado  por  projetos  sóciopolíticos  distintos,  dado  que  o  terreno  concreto  de  sua institucionalização, as políticas sociais, é permeado pelo antagonismo inerente à relação entre o capital e o trabalho.
  Nesse  período  dos  anos  1930,  o  Estado  Novo,  então  instituído,  defrontase  com  duas demandas: absorver e controlar os setores urbanos emergentes e buscar, nesses mesmos setores, legitimação  política.  Para  isso,  adota  uma  política  de  massa,  incorporando  parte  das reivindicações  populares,  mas  controlando  a  autonomia  dos  movimentos  reivindicatórios  do proletariado emergente, através de canais institucionais, absorvendoos na estrutura corporativista do Estado (SILVA E SILVA, 2006).
Nesse  momento  da  conjuntura  nacional,  o  Serviço  Social  ainda  é  um  projeto embrionário de intervenção profissional. Apresentase como estratégia de qualificação do  laicato  da  Igreja  Católica  que,  no  contexto  do  desenvolvimento  urbano,  vinha ampliando sua ação caritativa aos mais necessitados, para o desenvolvimento de uma prática ideológica junto aos trabalhadores urbanos e suas famílias. Procuravase, com isso, atender ao imperativo da justiça e da caridade, em cumprimento da missão política do apostolado social, em face do projeto de cristianização da sociedade, cuja fonte de justificação e fundamento é encontrada na Doutrina Social da Igreja (SILVA E SILVA, 2006, p. 2425).
  Acolhendo a concepção dominante na sociedade burguesa de que os problemas sociais estavam associados a problemas de caráter, Mary Richmond – da Sociedade de Organização da Caridade de Baltimore, figura que exerceu importante papel na criação das escolas para o ensino do  Serviço  Social  –  concebia  a  tarefa  assistencial  como  eminentemente  reintegradora  e reformadora do caráter. Atribuía grande importância ao diagnóstico social como estratégia para promover tal reforma e para reintegrar o indivíduo na sociedade (MARTINELLI, 1995). Sem dúvida, o positivismo foi a grande influência teórica que o Serviço Social recebeu nesse período.
  Desta forma, a intervenção profissional do assistente social estava dirigida, sobretudo, as situações  de  “pobreza”  e  dos  “pobres  ou  desajustados”.  O  objetivo  central  era  leválos  a  um maior ajustamento à ordem social vigente. Nesse contexto, a intervenção do Serviço Social se realizava  preferencialmente  no  âmbito  individual,  trabalhando  sobre  as  “características individuais”  dos  sujeitos  que  apresentavam  algum  tipo  de  “desajuste  social”.  Portanto,  a intervenção tinha um forte traço moralizador que se travestia de “educador”, se tratava de uma verdadeira “reforma moral”.
Conforme Verdès Leroux, o  projeto  profissional  dos  anos  30  baseavase  na  educação  da  classe  operária, fornecendolhes regras de bom senso e razões práticas de moralidade, corrigindolhes seus  preconceitos, ensinandolhes a racionalidade, os disciplinando nos seus trajes, seus lares, nos orçamentos domésticos, na maneira de pensar. A função do assistente social nesse  período  –  embebido  pelo  militantismo  católico  –  encontrase  na  missão ideológica da classe dominante, ou seja, no modelamento da personalidade do indivíduo de  acordo  com  a  visão  de  mundo  da  burguesia  adaptada  sob  a  forma  de  certo humanismo cristão (1986, p. 15).
  Gramsci (1999), embasado nas teorias de Marx (apud SIMIONATO, 1995), afirma que a classe dominante consegue impor a sua ideologia porque além de deter a posse do Estado e dos principais instrumentos hegemônicos (escola, religião, imprensa) possui ainda o poder econômico que representa uma grande força na sociedade civil, pois controla a produção e distribuição dos bens  econômicos  e  organiza  e  distribui  as  idéias.  A  força  material  dominante  na  sociedade constituise também a força espiritual dominante. Entretanto, uma força dominante pode não ser a corrente hegemônica e viceversa.
  Isso  acontece  porque  as  classes  sociais,  no  seu  processo  de  constituição  histórica, deparamse com uma infinitude de impasses e problemáticas sobre os quais articulam algum tipo de resposta. O posicionamento na estrutura social e a função que ocupam no processo produtivo são  elementos  fundantes  na  constituição  e  emersão  das  articulações  de  respostas,  mas  pode também acontecer que, diante de um problema, existam diferentes respostas, fazendo crer, nesse caso, que as visões de mundo são elaboradas em um processo de constituição histórica, do qual as classes sociais são os verdadeiros protagonistas (ALENCAR, 1994).
  Nesse  sentido,  Michel  Löwy  afirma  que  “[...]  todo  conhecimento  da  sociedade,  da economia, da história, da cultura é relativo a uma certa perspectiva orientada para uma certa visão social de mundo, vinculada ao ponto de vista de uma classe social em um momento histórico determinado” (1990, p. 195).
  Segundo Gramsci, nos cadernos do Cárcere (1999), [...]  uma  classe  social,  mesmo  tendo  uma  concepção  de  mundo  embrionária  e desarticulada,  toma  emprestada  de  outro  grupo  social,  por  razões  de  submissão  e  subordinação intelectual, uma concepção que lhe é estranha, e a segue não tanto porque acredita  nela,  mas  porque  a  sua  conduta  não  é  independente  e  autônoma  (apud
SIMIONATO, 1995, p. 80).
Libertas, Juiz de Fora, v.4, n.1 , p. 78 - 104, jul-dez / 2009 – ISSN 1980-8518 Dessa forma, nesse período, o Serviço Social assumiu uma faceta ‘humanitária’, por trás da  qual  se  escondiam  interesses  repressivos  e  de  controle  sobre  o  movimento  operário,  em concordância  com  o  Estado  e  a  burguesia,  os  quais  procuravam  implementar  políticas assistenciais,  e  até  mesmo  paternalistas,  capazes  de  atuar  como  fatores  de  desmobilização do proletariado.  Todo  esse  esforço  da  classe  dominante  dirigiase  a  um  objetivo:  bloquear  o desenvolvimento da consciência de classe do proletariado e sua organização política.
Portanto,  podemos  afirmar  que,  desde  a  sua  origem,  a  ‘cultura  do  Serviço  Social’  se encontra permeada pela herança da ‘tutela’, da moralização dos pobres, (MOLJO, 2007), tendo recebido uma grande influência do pensamento europeu, sobretudo, do francobelga, da doutrina social da igreja católica e posteriormente do positivismo que Iamamoto (1982) denominou como ‘arranjo teórico – doutrinário6’.
No Brasil, a primeira expressão original do Serviço Social surge em 1932, em São Paulo, o  chamado  Centro  de  Estudos  e  Ação  Social  (CEAS),  o  qual  tinha  por  objetivo  promover  a formação de seus membros pelo estudo da doutrina social da Igreja e fundamentar sua ação nessa formação doutrinaria e no conhecimento aprofundado dos problemas sociais. Visava tornar mais eficiente a atuação das trabalhadoras sociais e adotar uma orientação definida em relação aos problemas a resolver, favorecendo a coordenação de esforços dispersos nas diferentes atividades e obras de caráter social. Nesse contexto, em 1936, é fundada pelo CEAS, a Escola de Serviço Social de São Paulo, a primeira do Brasil7. Como sinaliza VerdèsLeroux (1986), os assistentes sociais da década de 1930, eram mais ricos em ‘capital cultural herdado’, pois seu discurso possuía a cultura adquirida no ambiente familiar,  mantendo  certo  afastamento  da  ‘cultura  cultivada’,  entendida  como  o  próprio conhecimento.  Estas  se  predispunham  a  uma  apreensão  moralizadora  das  soluções  materiais, intrínseca  aos  valores  da  Doutrina  Social  da  Igreja  Católica.  A  prática  do  assistente  social basicamente  estava  fundamentada  na  ação  da  ‘reeducação’  da  classe  operária,  ensinandolhes regras de bom senso e moralidade, modelando a personalidade dos indivíduos.
Retomando  as  palavras  de  Bezerra,  a  “cultura  passa  a  designar  o  estado  de  espírito
cultivado  pela  instrução,  passa  a  constituir  o  termo  cujo  adjetivo  é  ‘culto’,  e  não  ‘cultural’”
(BEZERRA, 2006, p. 33)
O PERÍODO 1950-1964: DO DESENVOLVIMENTISMO AO GOLPE DE ABRIL
 Partimos  do  pressuposto  de  que  as  transformações  societárias  afetam  o  conjunto  da  vida  em
sociedade e incidem diretamente sobre as profissões e suas áreas de atuação (NETTO, 1996);
estas transformações se operam não apenas no campo da materialidade, mas também no âmbito
de reprodução das relações sociais, portanto também afetam a dimensão da cultura.
  Durante as décadas de 1950 e 1960, tendo como pano de fundo o panorama sóciopolítico
e econômico do Brasil, o Serviço Social sofreu alterações substantivas reveladas nas demandas
práticointerventivas, na sua inserção nas estruturas organizacionalinstitucionais, nos conteúdos
da  formação  acadêmica  e  nos  seus  referenciais  teóricoculturais  e  ideológicos.  Os
desdobramentos ou conseqüências de todos esses processos no interior da profissão, detonados
por  elementos  relacionados  à  dinâmica  sóciopolítica  e  econômica  do  período,  impuseram  ao
Serviço  Social  “uma diferenciação e uma redefinição profissional sem precedentes” (NETTO,
1996).
Neste  período,  o  Serviço  Social  passa  a  ter  uma  presença  significativa  no  projeto  de
desenvolvimento nacional quando, durante a década de 1950, a Organização das Nações Unidas
(ONU)  e  outros  organismos  internacionais  decidem  sistematizar  e  divulgar  o  programa  de
Desenvolvimento  de  Comunidade  (SILVA  E  SILVA,  2006),  incluído  na  proposta  de
desenvolvimentismo adotado pelo governo Juscelino Kubitschek (19501955).
O programa de Desenvolvimento de Comunidade pautase por uma visão acrítica e aclassista
que se sustenta em pressupostos de uma sociedade harmônica e equilibrada, percebendo a comunidade
como unidade consensual, cujo objetivo seria a união dos esforços do povo aos do governo, enquanto
estratégia para chegar ao desenvolvimento, assumida como a modernização das estruturas, mediante uma
mudança cultural controlada (SILVA E SILVA, 2006, p. 26).
  O desenvolvimentismo coloca a pobreza como ‘mal geral’ que atinge a toda sociedade e
não um fenômeno social particular de uma classe ou de determinados segmentos sociais, cuja
superação  estava  fundamentada  no  caminho  do  crescimento  econômico,  da  modernização  da
cultura,  da  tecnologização,  etc.  Dessa  forma,  era  necessário  atingir  toda  a  sociedade,  sendo,

Libertas, Juiz de Fora, v.4, n.1, p. 78 - 104, jul-dez / 2009 – ISSN 1980-8518
portanto  convocado  o  ‘povo’  a  participar  do  esforço  de  construção  de  uma  nova  sociedade
desenvolvida e moderna.
  Com  o  advento  do  desenvolvimentismo  no  Brasil,  a  categoria  cultura  ganhou  maior
destaque  nos  debates  da  profissão  devido  principalmente  à  aplicação  do  Serviço  Social  de
Comunidade. Tal processo preocupavase, sobretudo, com a ‘cultura do atraso’, ou com as pautas
ou  costumes  que  eram  considerados  ‘atrasados’,  que  os  desenvolvimentistas  relacionavam
principalmente  com  a  cultura  rural,  que  continuava  existindo  mesmo  quando  as  pessoas
migravam para as cidades. Os grandes centros urbanos eram o símbolo da modernização e para
que todos pudessem alcançála era preciso educar e modernizar, retirar os pólos de atrasos para
substituílos por pólos modernos.
  Nesta época, acreditavase que uma das variáveis que fazia reproduzir o ciclo de pobreza
era justamente a ‘cultura do atraso’ dos setores populares. É muito importante salientar que, neste
período,  o  acesso  à  cultura,  mas,  sobretudo  a  mudança  de  padrões  culturais,  era  considerada
como  fundamental  para  o  crescimento  da  Nação,  portanto,  o  papel  que  os  assistentes  sociais
assumiam para si, era fundamental, já que serão estes um dos principais responsáveis por tais
mudanças.
  Como  já  mencionamos,  o  Serviço  Social  teve  que  se  adaptar  a  nova  conjuntura  e  se
preparar, sobretudo tecnicamente, para as novas tarefas que lhe eram colocadas. Assim passou a
se definir como um profissional técnico e eficiente que devia enfrentar os problemas sociais que
derivavam das situações de pobreza, privilegiando o trabalho junto às comunidades e procurando
trabalhar nas ‘deficiências culturais’ que estas apresentavam (MOLJO, 2007). Esta nova proposta
para o Serviço Social ficou evidenciada no II Congresso Brasileiro de Serviço Social, realizado
em 1961. Aqui vemos claramente como se vincula ao desenvolvimento da Nação difundido pelo
então presidente Jânio Quadros:
[...] o processo de desenvolvimento que almejamos enseja a participação do homem na
solução de  seus  problemas,  tornandoo  agente  de  seu  próprio  bemestar.  É  aí  que o
Serviço Social se transforma num instrumento de democracia ao permitir a verdadeira
integração  do  povo  em  todas  as  decisões  da  comunidade.  Os  programas  de
desenvolvimento  comunal  [...]  constituem  hoje  meio  eficaz  para  a  consecução  dos
objetivos nacionais, pois que despertam vocações adormecidas, estimulam as iniciativas
individuais e asseguram a participação efetiva do homem no meio social que lhe está
mais  próximo,  no  estudo  e  na  solução  dos  seus  problemas
 (apud WANDERLEY, 1998, p. 27).

  Como podemos observar, é atribuída ao Serviço Social, no governo supracitado, a tarefa
de  incrementar  programas  de  desenvolvimento  comunitário  que  possam  favorecer  a  mudança
cultural  do  povo.  A  tarefa  proposta  ao  Serviço  Social  é  fazer  com  que  a  população  aceite  o
desenvolvimento proposto pelo Estado baseado  na  moralização, justiça  social e solidariedade,
racionalização de recursos, aumento da produtividade e estímulos ao desenvolvimento das áreas
de saúde, educação e trabalho.
No início da década de 60, pois, começamos a assistir às crises das formas tradicionais
da profissão, com o Serviço Social se nutrindo  de  referenciais teóricoculturais e de
expressões ideopolíticas vinculadas às dimensões democráticas da vida social brasileira.
Esse movimento tem como cenário o processo democrático que atravessa a sociedade
no início dos anos 60 (ALENCAR, 1994, p. 3334).

  Referente ao Serviço Social – por ser perpassado por projetos sóciopolíticos distintos,
sendo, portanto, atravessado por perspectivas políticoideológicas, e também por estar situado em
relações sociais concretas, das quais a cultura é elemento essencial – acreditase que a profissão
tenha, em alguma medida, se aproximado das problemáticas que se exprimiam através de temas
ou temáticas nas produções culturais do período e que tenham se apresentado também nos foros
próprios da profissão.
A  partir  dos  anos  1950,  já  se  observam  mudanças  significativas  no  Serviço  Social,
analisadas por Iamamoto e Carvalho (1982): abrese novo e crescente campo de trabalho para o
Serviço  Social  nas  grandes  empresas;  o  Serviço  Social  acompanha  a  modernização  das
instituições  públicas,  migrando  para  prefeituras  e  participando  de  programas  sociais  com  a
população  rural;  a  profissão  alcança  maior  nível  de  sistematização  nas  instituições  sociais  e
assistenciais; a ampliação do reconhecimento profissional por entidades de base nacional, como
Legião Brasileira de Assistência (LBA), Serviço Social da Indústria (SESI), Serviço Nacional de
Aprendizagem Industrial (SENAI); incorporação de novos métodos de atuação como o Serviço
Social de grupo e a dinâmica de grupo; aprofundamento da influência norteamericana no Serviço
Social; realização de diversos encontros internacionais.
  Dentro de toda essa reestruturação social, ocorrem ainda mudanças no foco profissional
do Serviço Social: a profissão começa a ser discutida no âmbito macrossocietário, ultrapassando
a abordagem localista de até então, inserindo o assistente social em equipes multidisciplinares.

Essa adoção da abordagem comunitária enquanto ‘processo’ profissional pelo Serviço Social não
transcende o ‘tradicionalismo’, mas constituise em um marco para tal ultrapassagem.
  Dessa forma,
[...]  o  desgaste  do  Serviço  Social  tradicional  foi  um  fenômeno  continental:  a
movimentação sóciopolítica contestadora que emerge na sociedade com incidência no
terreno  ideocultural,  na  prática  dos  setores  vinculados  a  Igreja  e  no  movimento
estudantil  fertilizavam  o  Serviço  Social  e  contribuem  para  a  emersão  de  um  novo
projeto  profissional,  que  nem  de  longe  foi  um  projeto  unitário  e  homogêneo,
evidenciando  projetos  distintos:  se  inicialmente  inscreviase  no  bojo  da  proposta
desenvolvimentista  –  com  a  profissão  buscando  redimensionarse,  teórica  e
praticamente,  para  atender  a  superação  do  subdesenvolvimento  –  no  decorrer  do
movimento  incorporamse  parâmetros  teóricoanalíticos  de  inspiração  marxista
(ALENCAR, 1994, p. 331).

  No período 19611964 no Brasil, se inicia o desenvolvimento de uma perspectiva crítica
ao Serviço Social ‘tradicional’, quando os setores da categoria profissional dos assistentes sociais
esboçam  algumas  tentativas  aos  processos  de  lutas  por  mudanças.  “Esses  profissionais  são
impulsionados por uma profunda agitação política que ganha força no Brasil e em toda a América
Latina,  ante  a  crise  do  modelo  desenvolvimentista,  gerando  frustrações  em  amplos  setores”.
(SILVA E SILVA, 2006, p. 27).
  Nos anos pré64, ocorrem ainda algumas mudanças também no que tange a mobilização
da  sociedade  civil  brasileira.  O  proletariado  urbano  e  rural  vê  sua  relação  de  forças  com  a
burguesia modificada e, em conjunto com outras frações das classes subalternas, organizase e
adquire força reivindicatória por direitos e mudanças.
  A  Igreja  Católica  também  foi  atingida  pelos  efeitos  das  transformações  sociais.
Estruturaramse  divergentes  visões  de  mundo  e  perspectivas  de  ação,  divergentes  concepções
sobre a missão da Igreja perante instituições, grupos e etc. Consequentemente, o Serviço Social,
que sempre manteve historicamente vínculos com a Igreja Católica, recebe influências de seus
novos direcionamentos, introduzindo modificações no desenvolvimento de comunidade presente
nos cursos de formação, nos currículos e na prática do assistente social. O movimento estudantil
aliase a esse processo, exigindo dos profissionais do Serviço Social um engajamento efetivo da
profissão  no  que  se  refere  às  reformas  postuladas  por  estudantes,  operários,  intelectuais  e  o
próprio governo

  Nesse  período,  a  história  da  cultura  no  Brasil  apresentavase  rica,  incorporando,  pelo
menos até 1968, um movimento cultural que busca inspiração em posicionamentos democráticos
e progressistas. Acreditase que, nos anos 19601964, tenha se apresentado um projeto cultural de
inspiração nacionalpopular8, permeado por uma visão de mundo crítica e democrática, e que se
expressava nas mais distintas esferas da cultura (teatro, cinema, pensamento social, etc.).
  Através  das  discussões,  conferências,  encontros,  etc.,  manifestamse  interpretações  da
realidade  brasileira,  tentativas  de  explicação  da  estrutura  sócioeconômica  e,  também,
apresentamse  soluções  e  saídas  para  a  ultrapassagem  do desenvolvimento  rumo  a  um amplo
desenvolvimento da nação. Entretanto, quando tudo parecia caminhar para uma mudança efetiva
na prática do Serviço Social nessa época, sobreveio o golpe de abril.

 O PERÍODO 1964-1985: A DITADURA MILITAR
 
Existe  uma  vasta  bibliografia  sobre  o  período  da  ditadura  militar  no  Brasil,  portanto  não
realizaremos  uma  análise  minuciosa  sobre  esta,  mas,  colocaremos  alguns  elementos  que  são
fundamentais para compreender o Serviço Social e a cultura neste período. Entre os estudiosos da
autocracia burguesa no Brasil, existe um consenso acerca da existência de diferentes momentos
que a compuseram9, dos quais poderíamos citar: a) 1964 a 1968, com a definição das bases do
Estado  de  Segurança  Nacional*0  a  formação  de  novos  mecanismos  de  controle  e  reforma
constitucional;  a  institucionalização  do  novo  Estado  e  sua  grande  crise  em  6768,  quando  da
instituição do AI5; b) de 1969 a 1974, o mais rígido da ditadura militar, conhecido como período
negro; c) de 1974 a 1985, da distensão à lenta retirada dos militares da cena política e a anistia
política.
  No que diz respeito ao mundo da cultura, a autocracia burguesa procurou controlar a vida
cultural  no  país1*,  considerando  que  o  pensamento  mais  crítico  era  o  que  dominava  a  cena
cultural,  a  autocracia  teve  que  trabalhar  em  duas  direções  bem  definidas:  repressão  do
pensamento  crítico¹²  e  criação  de  um  bloco  cultural  funcional  a  seu  projeto  modernizador
(NETTO, 1996).

 Assim uma das estratégias adotadas pela autocracia burguesa foi o de Desenvolvimento
de  Comunidade,  tendo  como  principal  função  eliminar  a  resistência  cultural  às  inovações,
enquanto obstáculos ao crescimento econômico, bem como integrar as populações aos programas
de desenvolvimento¹³. Era uma modernização que implicava a mudança de hábitos, de costumes
entre  outras,  mas  lembremos  que,  como  afirma  Netto  (1996),  a  política  cultural  da  ditadura
também procurou manter algumas características típicas da sociedade brasileira como o elitismo,
o que, sem dúvida, favorecia a manutenção da sociedade desigual e excludente, além de continuar
com as decisões pelo alto, a concentração de renda e de propriedade. Assim, uma vez instalada a
ditadura militar, esta teve como objetivo reprimir as vertentes mais críticas do mundo da cultura.
  Nesse contexto, através do AI5, se ‘institucionaliza’ a tortura como meio de conseguir
informação,  de  institucionalizar  a  repressão,  o  desaparecimento  de  pessoas,  como  estava
acontecendo na maior parte da América do Sul. Foi a partir do AI5 que a ditadura passou de ser
um regime reacionário para um regime fascista (NETTO, 1996), criando uma verdadeira cultura
do medo que levava as pessoas a temerem intervir no espaço público.
  Como já sinalizamos, além de reprimir, ele precisou criar um bloco cultural que atendesse
aos  interesses  do  novo  regime  e  como  a  modernização,  necessariamente  implicava  numa
modernização econômica, o Estado investiu num tipo de profissional, que fosse técnico, eficiente
e, sobretudo ‘asséptico’.
   O padrão intervencionista do Estado brasileiro gestado no pós1930, se intensifica durante
esse período, no qual o Estado não somente intervêm na área social como controla a relação
capitaltrabalho,  controla  os  sindicatos  e  institui  políticas  salariais,  transformandose  numa
espécie  de  grande  empresário,  que  passa  a  assumir  e  a  dinamizar  os  setores  estratégicos  da
economia para que o país atinja um novo patamar de industrialização (SILVA E SILVA, 2006). É
importante salientar que:
no regime militar, a questão social foi enfrentada pelo binômio repressãoassistência,
ficando  a  assistência  subordinada  aos  preceitos  da  Doutrina  de  Segurança  Nacional,
funcionando como mecanismo de legitimação política do regime. Os serviços sociais
são, ainda, assumidos como campo de investimento, com subordinação da assistência
pública  à  reprodução  do  capital,  fazendo  com  que  as  questões  sociais  sejam
transformadas em problemas de administração, com burocratização e esvaziamento do
seu conteúdo político. Todavia, contraditoriamente, a assistência tornase, no âmbito
das lutas políticas dos setores populares, uma forte demanda da própria classe na luta ela  conquista  da  cidadania,  em  face  do  agravamento  da  pauperização  dos
trabalhadores (SILVA E SILVA, 2006, p. 38).
  Desta forma, neste contexto, novas demandas são colocadas para o Serviço Social, que já
não consegue responder com a sua antiga formação e atuação, produzindose o que Netto (1996)
denominou como a erosão do Serviço Social Tradicional¹4, abrindo espaço para a Renovação do
Serviço Social no Brasil. Netto entende a Renovação do Serviço Social como
o conjunto de características novas que, no marco das constrições da autocracia burguesa,
o  Serviço  Social  articulou,  à  base  do  rearranjo  das  suas  tradições  e  da  assunção  do
contributo  de  tendências  do  pensamento  social  contemporâneo,  procurando  investirse
como  instituição  de  natureza  profissional  dotada  de  legitimação  prática,  através  de
respostas a demandas sociais e da sua sistematização, e de validação teórica, mediante a
remissão às teorias e disciplinas sociais (NETTO, 1996, p. 131).

  É importante destacar que o autor explicita três vertentes que fizeram parte do processo de
renovação  do  Serviço  Social  a  saber:  a  modernização  conservadora,  a  atualização  do
conservadorismo e a Intenção de Ruptura.
A  perspectiva  da  modernização  conservadora  constituiu  a  primeira  expressão  do
processo de renovação do Serviço Social. Sua formulação é afirmada nos resultados do primeiro e
segundo  “Seminário de Teorização do Serviço Social”, os quais apresentam seus textos finais
sintetizados nos Documentos de Araxá (1967) e Teresópolis (1970). As concepções formuladas
nesses documentos vinculadas à problemática do desenvolvimento, visualizado como um elenco
de mudanças que, levantando barreiras aos projetos de eversão das estruturas socioeconômicas
nacionais  e  de  ruptura  com  as  formas  dadas  de  inserção  na  economia  capitalista  mundial,
demanda  aportes  técnicos  elaborados  e  complexos  –  além  da  sincronia  de  ‘governos’  e
‘populações’  –  com  uma  conseqüente  valorização  da  contribuição  profissional  dos  agentes
especializados em ‘problemas econômicos e sociais’ (NETTO, 1996).
A  segunda  vertente  da  Renovação  foi  a  reatualização  do  conservadorismo  que  se
expressa nos Seminários de Sumaré (1978) e Alto da Boa Vista (1984). Esta perspectiva recusa
tanto do positivismo quanto do marxismo e assume a perspectiva baseada na fenomenologia.
A terceira Perspectiva foi a de Intenção de Ruptura, que emerge no quadro da estrutura
universitária  brasileira  na  primeira  metade  dos  anos  setenta,  tendo  como  cenário  a  Escola  de
Serviço Social da Universidade Católica de Minas Gerais¹5.
Conforme Netto (1996), tal perspectiva confrontase com a autocracia burguesa no plano
teóricocultural (os referenciais de que se amparava negavam as legitimações da autocracia), no
plano profissional (os objetivos de se propunha chocavamse com o perfil do assistente social
requisitado  pela  modernização  conservadora)  e  no  plano  político  (suas  concepções  de
participação  social  e  cidadania,  bem  como  suas  projeções  societárias,  batiam  contra  a
institucionalidade da ditadura).
Essa corrente levantou a necessidade de que a profissão se debruçasse sobre a produção de
um conhecimento crítico da realidade social, para que o próprio Serviço Social pudesse construir

os objetivos e (re)construir objetos de sua intervenção, bem como responder às demandas sociais
colocadas pelo mercado de trabalho e pela realidade. Assim, pôde o Serviço Social aprofundar o
diálogo  crítico  e  construtivo  com  diversos  ramos  das  Ciências  Humanas  e  Sociais  (SOUSA,
2008). A intenção de ruptura fez pela primeira vez o diálogo com o marxismo e posteriormente
com o legado marxiano.
Será  a  partir  deste  período  que  o  Serviço  Social  começará  a  ter  polêmicas,  o  que
necessariamente  levarão  ao  pluralismo  teórico  e  ideológico  (NETTO,  1996),  assim  como  à
utilização das diferentes matrizes do pensamento social.
A primeira (modernização conservadora) recorrerá às vertentes modernizantes, dando à
cultura  um  elemento  dinamizador  da  sociedade  em  prol  do  desenvolvimento  econômico.  A
reatualização do conservadorismo recorrerá à fenomenologia e verá na cultura um elemento do
sujeito ‘individual’, partindo da metodologia dialógica; e finalmente temos a Intenção de Ruptura
que entenderá a cultura como a cultura do povo e a necessidade da mobilização social em prol das
mudanças sociais.
A expressão ‘cultura do povo’ teria a vantagem de permitir uma leitura da frase
de Marx acerca das idéias dominantes enfatizando o termo ‘dominante’, isto é,
do fato de que a existência de idéias dominantes são as da classe dominante e
que seu contrário deve existir, ou seja, as idéias dos dominados enquanto parte
de  uma  cultura  dominada  [...]  Significado  da  luta,  pois  é  uma  luta  contra  a
opressão,  uma luta  que  exprime  um  único desejo  e pelo  qual  o  oprimido  se
diferencia radicalmente do opressor: o desejo da nãoopressão (CHAUÍ, 1985,
p. 122).

  Um  fato  que  não  podemos  deixar  de  mencionar  foi  o  III  Congresso  Brasileiro  de
Assistentes  Sociais  (CBAS),  denominado  “Congresso  da  Virada”  realizado  na  cidade  de  São
Paulo em 1979. Neste congresso, os segmentos mais críticos dos profissionais – articulados a luta
mais ampla da classe trabalhadora e a luta pela volta da democracia – conseguiram instaurar o
pluralismo  teórico,  político  e  ideológico  rompendo  com  o  conservadorismo  que  imperava  até
então.
  A  mesa  do  congresso  foi  assumida  por  sindicalistas,  retirando  os  representantes  da
ditadura da mesma. A partir daqui, os projetos societários em disputa ficam claramente divididos.
Fica evidente que esta  virada somente foi possível pela reinserção da classe operária na cena
política, pelo auge dos movimentos sociais nos quais os assistentes sociais se incorporaram ou
aderiram.
Se a ditadura militar intentou, através da Doutrina de Segurança Nacional, calar quaisquer
vetores críticos, temos, na verdade, a partir dos finais dos anos 1970, o movimento contrário ao
esperado  pela  ditadura.  O  que  aconteceu  foi  a  politização  dos  vetores  críticos  da  sociedade:
quanto mais se fechavam os caminhos da expressão, mais se politizaram estes setores.

Assim, estes vetores críticos no interior do Serviço Social deram a primeira contribuição
para a construção da Intenção de Ruptura com o Conservadorismo, a construção de um projeto
ético político emancipatório, com uma clara direção política que amadureceu na década de 1990,
como veremos a seguir.
A TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA E OS ANOS 1990
 O período posterior à ditadura, conhecido como Nova República e que compreende os anos de
1986 a 1990, foi marcado por uma ampla participação e mobilização da sociedade e, no caso do
Serviço  Social,  não  foi  diferente.  Este  período  também  foi  caracterizado  por  uma  ampla
participação da categoria profissional, não somente na sua reorganização interna, mas também na
esfera  pública.  Expressão  desta  participação  foi  a  importância  que  o  Serviço  Social  teve  na
aprovação de algumas leis na Constituinte de 1988, a exemplo, podemos citar, da Lei Orgânica
de  Assistência  Social,  entre  outros.  Abreu  (2002)  ressalta  que  o  protagonismo  político  dos
assistentes  sociais  brasileiros  na  Constituinte  de  1988,  foi  fundamental,  sobretudo,  para  a
incorporação  da  Política  de  Assistência  Social  ao  campo  dos  Direitos  Sociais,  mas  isso  não
significou  a  superação  das  práticas  assistencialistas  e  filantrópicas.  O  protagonismo  dos
assistentes  sociais  também  foi  fundamental  em  outras  políticas,  como  aquelas  destinadas  às
crianças e adolescentes, dentre outras.
  Mas, não podemos desconhecer o contexto em que a Constituinte estava se realizando,
um contexto marcado por profundas transformações estruturais, que levaram ao agravamento da
questão social.  Foi neste período que tivemos  a instauração do neoliberalismo¹6 no Brasil, da
reestruturação produtiva, que impôs novas formas de organizar o trabalho como a flexibilização
(HARVEY,  1989),  a  reforma  administrativa  no  âmbito  do  Estado,  denominado  por  Behring
(2003)  como  contrareforma.  Foi,  portanto,  um  contexto  adverso  à  concretização  efetiva  dos
direitos sociais que como já observamos, eram garantidos nesta mesma época na constituição de
1988.
  Foi nesse período que o Serviço Social ganhou “maturidade intelectual” (Yazbek, 2000)
se confrontando ante este tipo de sociedade de forma tanto política como teórica. As produções
do Serviço Social brasileiro ganham reconhecimento não somente dos seus pares das ciências

sociais  no  Brasil  como  no  nível  latinoamericano  e  internacional.  Será  nesse  contexto  que  o
projeto ético político do Serviço Social, originado nos finais dos 1970, ganhará hegemonia no
Serviço Social.
O projeto éticopolítico tem em seu núcleo o reconhecimento da liberdade como valor
ético central – a liberdade concebida historicamente, como possibilidade de escolher
entre alternativas concretas; daí um compromisso com a autonomia, a emancipação e
plena  expansão  dos  indivíduos  sociais.  Consequentemente,  o  projeto  profissional
vinculase a um projeto societário que propõe a construção de uma nova ordem social,
sem dominação e/ou exploração de classe, etnia e gênero. A partir destas escolhas que o
fundam, tal projeto afirma a defesa intransigente dos direitos humanos e a recusa do
arbítrio  e  dos  preconceitos,  contemplando  positivamente  o  pluralismo    tanto  na
sociedade como no exercício profissional. (NETTO, 1999, p. 104105).
A  hegemonia  deste  projeto  se  expressa  nas  diretrizes  curriculares  da  ABEPSS,  nas
direções da categoria profissional, na direção do ENESSO.
Braz (2008) entende o projeto ético político como
uma  projeção  coletiva  que  envolve  sujeitos  individuais  e  coletivos em  torno  de  uma determinada  valoração  ética que  está  intimamente  vinculada  a  determinados  projetos societários
presentes na sociedade que se relacionam com os diversos projetos coletivos (profissionais ou não) em disputa na mesma sociedade.
  Com relação à cultura, podemos observar que será a partir da redemocratização política
que ressurgirá um novo interesse das ciências sociais em geral e do Serviço Social pelo estudo
acerca  da  participação,  especialmente  pela  participação  política,  um  interesse  pelo  estudo  da
cultura política, especialmente pelo estudo do patrimonialismo que estava presente na maioria das
políticas públicas brasileiras.
Isto fica evidente quando, numa outra pesquisa¹7, nos debruçamos acerca da produção de
conhecimento  do  Serviço  Social  com  relação  à  cultura.  Nessa  pesquisa,  observamos  que
majoritariamente a categoria cultura se relaciona com as Políticas Sociais. Este dado confere com
a  concentração  das  linhas  de  pesquisa  dos  Programas  de  Pósgraduação,  apresentada  por
Iamamoto no ENPESS em 2004. No que se refere à concepção de cultura, observamos que esta
se relaciona principalmente ao conceito de hegemonia que supõe a dominação e se relaciona à
cultura subalterna presente nas classes com as quais o Serviço Social trabalha. Também aparecem
as concepções que priorizam a análise da cultura política nas suas manifestações contemporâneas,
relacionandose tanto com a política pública, quanto com o Serviço Social.
  Nessa conjuntura, apesar dos dilemas que o Serviço Social enfrenta, registramse avanços
para a profissão, tais como: avanço no debate teórico sobre questões que nortearam o Movimento
de Renovação, procurando resgatar o Estado enquanto espaço de trabalho dos assistentes sociais
e procurando superar a concepção da assistência social como assistencialismo, situandoa como
um  direito  do  cidadão  e  dever  do  Estado;  avanço  das  questões  acadêmicas,  com  o
reconhecimento do CNPq em 1982 como uma área de produção de conhecimento; a criação do
Centro  de  Documentação  e  Pesquisa em  Política  Social  e  Serviço  Social  (CE  –  DEPSS),  em
1987; avanço da organização interna da categoria profissional e sua relação com a organização
mais  geral  dos  trabalhadores;  ampliação  da  participação  políticopartidária  dos  assistentes
sociais; desenvolvimento de avaliação do processo de formação profissional, a partir do currículo
mínimo  em  vigor;  maior  articulação  do  Serviço  Social  brasileiro  com  a  realidade  latino
americana e do Serviço Social no continente.
  Em  contrapartida,  questões  significativas  precisam  ser  consideradas:  a  perspectiva  de
estreitamento  do  mercado  de  trabalho  para  o  assistente  social,  em  face  da  tendência  de
privatização  das  políticas  sociais  e  redução  do  espaço  público;  a  transferência  de  programas
assistenciais  diretamente  para  entidades  populares  e  ampliação  de  medidas  assistenciais  no
interior de empresas privadas, desvinculadas da ação profissional do assistente social (SILVA E
SILVA, 2006).
  Essa  conjuntura  econômica,  política  e  social  configurada  no  Brasil  da  década  de  90
repercute diretamente na atuação do assistente social na sociedade e no Serviço Social enquanto
profissão.  Com  a  redução  dos  programas  e  recursos  para  a  área  social,  a  possibilidade  de
estreitamento  do  mercado  de  trabalho  é  fator  concreto.  Os  movimentos  populares,  grandes
estimuladores para o repensar permanente do Serviço Social, vivenciam momentos de refluxo
neste período de crise econômica, ideológica, social, política e cultural (SILVA E SILVA, 2006).
A partir dos anos 90, as estratégias políticoculturais acionadas pelas classes fundamentais na luta
(instaurada  nas  últimas  três  décadas  do  século  XX)pela  hegemonia  no  Brasil  tensionaram  as
bases  históricas  da  função  pedagógica  do  Serviço  Social,  com  uma  nova  onda  de
conservadorismo.
  Nesse  período,  intensificase  a  implementação  do  projeto  neoliberal  no  Brasil  e  os
direcionamentos  das  lutas  das  classes subalternas  passam  a  tensionar  a  construção  do  projeto
profissional.
explicitandose  nos  debates  no  processo  de  revisão  curricular,  que  culmina  com  as
diretrizes  curriculares  de  1996,  materializadas,  sobretudo  nas  divergências  quanto  à
explicitação ou não da direção social da formação profissional face à postura pluralista
assumida pelo referido projeto (ABREU, 2002, p. 154).
  Será nesse quadro que se “reatualizará uma vez mais” o conservadorismo, agora com a
cara  do  “pósmoderno”,  com  um  discurso  do  “efêmero”,  do  fim  da  história,  o  fim  das  lutas
sociais. Fukuyama (2004) foi um daqueles que anunciaram que, com a queda do muro de Berlim
e com o fim da União  Soviética, havia  chegado  o  “fim da história”  e outros autores não se
cansaram  de  repetir  que  as  grandes  narrativas  tinham    chegado  ao  seu  fim  já  que  estas  não
conseguiam  compreender  nem  os  sujeitos  e  muito  menos  a  realidade  social,  privilegiando  os
pequenos acontecimentos, os pequenos discursos¹8.
  Neste mesmo campo, encontrase Lyotard, com a sua tese pósmoderna, afirmando que os
grandes relatos, típicos das sociedades ocidentais, foram substituídos por “jogos de linguagens”
“flexíveis”  e  “ajustáveis”.  (In  LOWY,  2006:15)  Estas  “teses”  foram  derrocadas  pela  própria
história, pelo movimento mesmo da história.
  Entretanto,  podemos  observar,  ainda  que  muito  timidamente,  que  estas  teses  vem
“chegando ao Serviço Social”, mas estas são ainda observações que merecem um tipo de análise
mais profunda.
Portanto, os anos 90 representaram um momento de inflexão no Serviço Social, já que
todo o avanço teóricometodológico e político que vinha se erguendo enfrentava a hegemonia das
políticas neoliberais que se chocavam diretamente com o projeto éticopolítico porque as políticas
do neoliberalismo deixam de lado os valores universais e emancipatórios baseados numa cultura
política que busca a emancipação do homem.
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para  analisarmos  a  cultura  devese  considerar  determinada  ordem  social  e  suas
características bem como considerar a dimensão histórica de um determinado traço cultural. O
estudo da cultura permite a compreensão das relações entre as diversas práticas sociais e como as
mesmas são vividas e experimentadas, como totalidade, em um determinado período histórico
pelos diversos sujeitos sociais.
Para  os  estudos  sobre  os  momentos  históricos  da  profissão,  foram  colocadas  aqui  as
demandas  para  o  Serviço  Social  e  as  respostas  que  a  categoria  tem  sido  capaz  de  formular,
apresentando também as concepções de cultura presente em cada período histórico.
Um  dos  maiores  desafios  que  o  assistente  social  vive  no  presente  é  desenvolver  sua
capacidade  de  decifrar  a  realidade  e  construir  propostas  de  trabalho  criativas  e  capazes  de
preservar  e  efetivar  direitos  a  partir  de  demandas  emergentes  do  cotidiano.  Devido  a  isso,  a
categoria  cultura  tornase  importantíssima  para  a  análise  da  profissão,  pois  está  associada  à
intervenção profissional, ao conhecimento dos sujeitos com os quais trabalhamos e também se
encontra relacionada à compreensão da totalidade da realidade concreta.
Portanto,
cultura  significa,  neste  sentido,  um  “modo  de  vida  global”  de  determinado  povo  ou
grupo social, compreendendo um conjunto de elementos (valores, costumes, tradições,
símbolos, representações e referências) que constroem, em torno de uma coletividade,
um parâmetro dinâmico de identidade. Neste sentido, se fala da “cultura de diferentes
povos  ou  grupos”,  a  qual  possibilita,  entre  eles,  ao  mesmo  tempo,  um  elemento  de
inclusão  e outro de  exclusão,  quando  se  compartilha ou  não  de  uma  mesma  cultura
(BEZERRA, 2006, p. 37).
Observamos que, muitas vezes, o Serviço Social, como outras profissões, não recuperam
esta dimensão na hora de planejar uma determinada política, de organizar uma atividade inclusive
na hora de distribuir uma cesta básica. Como exemplo, citamos uma pesquisa realizada no ano de
2002, a partir de um convenio entre o Instituto de estudos especiais da PUC/SP e um governo
estadual, que avaliava os programas sociais desse Estado, tendo como carro chefe dos programas
sociais o Bolsa Alimentação, uma cesta básica que era idêntica para pessoas que moravam na
cidade como para os índios que moravam na aldeia. O que observamos foi um fracasso neste tipo
de trabalho, já que além de não fornecer os nutrientes que os índios precisavam, davam alimentos
enlatados  que  ao  serem  jogados  no  chão,  acabaram  por  ferir  os  índios  que  não  tinham  sido
vacinados,  o  que  trouxe  outros  tipos  de  problemas,  que  poderiam  ter  sido  evitados  se  no
momento  de  programar  quaisquer  tipos  de  atividades,  levassem  em  conta  as  particularidades
históricas e culturais das populações com as quais trabalhamos.
  Dito  de  outra  forma,  as  respostas  que  os  profissionais  constroem  para  responder  às
demandas que lhes são colocadas, não somente de forma individual, mas, sobretudo, coletiva,
expressam projetos profissionais, que se orientam por uma determinada concepção de profissão e
de sociedade, que incluem valores e visões de mundo.
  Será a partir da década de 80 que a perspectiva crítica, influenciada por Marx e a tradição
marxista,  ganhará  hegemonia  no  Serviço  Social  brasileiro,  trazendo  uma  nova  concepção  de
profissão, portanto novos horizontes para a intervenção do Serviço Social.
   Estamos nos referindo fundamentalmente à nova concepção trazida por Iamamoto (1982)
que entende a profissão situada no contexto das relações sociais e na divisão sócio técnica do
trabalho e que procura conhecer a relação orgânica entre sociedade e Serviço Social, portanto
entre as classes sociais.
  Ao entender que o Serviço Social se insere na reprodução da vida social, entende que isso
implica não somente a reprodução biológica, mas também ideológica que, sem dúvida, engloba a
cultura aos modos de vida. Reafirmamos uma vez mais que, para o Serviço Social, conhecer esta
dimensão é fundamental, já que nos auxiliará tanto na nossa intervenção como nas produções
teóricas que realizemos.
SOCIAL WORK AND CULTURE: CONSIDERATIONS ABOUT CONCEPTIONS OF
CULTURE ON THE TRAJECTORY OF THE PROFESSION IN BRAZIL FROM THE
BEGINNING TO 90´S
ABSTRACT
__________________________________________________________________________________
      This article provides a historicalcritical reconstruction  grounded in the Marxist perspective  on the
different conceptions of culture present in the historical trajectory of Social Work in Brazil and how this
area has appropriated them. We address the relationship that Social Work established with the dimension
of culture in its historical path, from 1930 to 1990, revealing the processes that constitute the culture,
examining their views and highlighting its influence on the history of social work in Brazil.
    Keywords: Social Work, culture, history

Notas:

¹ O  termo ‘mundo da  cultura’  foi  divulgado  por  alguns marxistas italianos.  Estes  se referiam  principalmente às
manifestações,  representações  e  idéias  que  se  constituem  na  sociedade  capitalista  contemporânea  e  envolvem  a
elaboração  estética,  a  pesquisa  científica,  a  reflexão  sobre  o  ser  social  e  a  construção  de  concepções  de  mundo
(NETTO, 1996).

² O texto que aqui apresentamos tem como base o trabalho de conclusão de curso de Ariane Monteiro Cunha (2009)
realizado sobre a orientação da prof.ª Carina Berta Moljo e a pesquisa coordenada pela prof. Moljo (2008) sobre esta
temática.
³ Segundo Bezerra (2006, p. 39), “virá da contribuição gramsciana, um importante avanço nesta compreensão de
cultura, ao afirmar que a capacidade de trabalho intelectual é inerente ao homem, que a vivencia e a desenvolve de
diferentes maneiras, de acordo com as condições históricas nas quais vive”.
4 Fazse necessário registrar também a compreensão de cultura num sentido mais restrito, qual seja, o da produção
artística e intelectual de determinada sociedade. A arte e a vida intelectual explicam e explicitam a cultura, sendo, ao
mesmo tempo, determinadas por ela. Ao longo de toda a história da arte, podemos observar como ela sempre foi um
forte instrumento ideológico, respondendo a projetos societários diferenciados e, ao mesmo tempo, expressando as
relações  sociais  que  dão  vida  a  estes  projetos.  Este  uso  do  termo  cultura,  longe  de  uma  perspectiva  menos
importante, constróise na vida social, portanto, como espaço de reflexo e de mediação (BEZERRA, 2006).
5 Iamamoto (1982) entende o ‘arranjo teórico – doutrinário’ como a junção do discurso humanista cristão com o
suporte técnicocientífico inspirado na teoria social positivista, abrindo para a profissão o caminho do pensamento
conservador.
6 Iamamoto (1982) entende o ‘arranjo teórico – doutrinário’ como a junção do discurso humanista cristão com o
suporte técnicocientífico inspirado na teoria social positivista, abrindo para a profissão o caminho do pensamento
conservador.
7 A saber, a primeira escola de Serviço Social não pode ser considerada como fruto de uma iniciativa exclusiva do
Movimento Católico Laico, por já existirem, neste período, uma demanda por parte do Estado. Com a criação, em
1935  do  Departamento  de  Assistência  Social  do  Estado, a  demanda  pela  formação técnica  especializada terá no
Estado seu setor mais dinâmico e este passará a regulamentála e incentivala, institucionalizando sua progressiva
transformação em profissão.
8 Segundo Abreu (1995, p. 186) “a formação de uma vontade coletiva nacionalpopular é atingida pela ofensiva
ideológica do capital direcionada para a reconstituição de sua hegemonia, que potencializa a captura da subjetividade
das classes subalternas à lógica do capital, ao mesmo tempo em que debilita a solidariedade no interior da classe e a
perspectiva classista da mesma, fertilizando o surgimento de uma vontade corporativa em prejuízo do fortalecimento
de  uma  vontade  coletiva  nacionalpopular,  o  que  aponta,  pois,  uma  tendência  de  fragilização  das  estratégias  de
construção de uma pedagogia emancipatória das classes subalternas”.
9 Destacamos o trabalho de Netto, (1996), Moreira Alves (1987) entre outros.
10 A Lei de Segurança Nacional, promulgada em 4 de abril de 1935, definia crimes contra a ordem política e social.
Sua  principal  finalidade  era  transferir  para  uma  legislação  especial  os  crimes  contra  a  segurança  do  Estado,
submetendoos a um regime mais rigoroso, com o abandono das garantias processuais. Nos anos seguintes à sua
promulgação foi aperfeiçoada pelo governo Vargas, tornandose cada vez mais rigorosa e detalhada. Após a queda
da ditadura do Estado Novo em 1945, a Lei de Segurança Nacional foi mantida nas Constituições brasileiras que se
sucederam.  No  período  dos  governos  militares  (19641985),  o  princípio  de  segurança  nacional  iria  ganhar
importância  com  a  formulação,  pela  Escola  Superior  de  Guerra,  da  doutrina  de  segurança  nacional.  Setores  e
entidades democráticas da sociedade brasileira, como a Ordem dos Advogados do Brasil, sempre se opuseram à sua
vigência, denunciandoa como um instrumento limitador das garantias individuais e do regime democrático (FGV–
CPDOC, disponível em http://www.cpdoc.fgv.br/nav_historia/htm/anos3037/ev_radpol_lsn.htm. Acesso em 12 de
junho de 2009).
11 O capítulo I do livro de Netto (1996) aprofunda sobre esta temática.
12 Recordemos que estava vigente a Doutrina de Segurança Nacional.
13 Destacamos que tratase de uma estratégia desenhada pelas Organização das Nações Unidas (ONU), que adquiriu
particularidades específicas em cada um dos países onde foi aplicada.
14    Netto  entende  por  Serviço  Social  Tradicional:  “a  prática  empirista,  reiterativa,  paliativa  e  burocratizada  dos
profissionais, parametrada por uma ‘ética liberalburguesa’, e cuja teleologia  ‘consiste na correção desde um ponto
de  vista  claramente  funcionalista  de  resultados  psicosociais  considerados  negativos  ou  indesejáveis,  sobre  o
substrato de uma concepção (aberta ou velada) idealistas e/ou mecanicista da dinâmica social, sempre pressuposta a
ordenação capitalista da vida como um dado ineliminável” (NETTO, 1996, p.117118).
15 Aqui merecem destaque os esforços de um grupo de profissionais que, em Minas Gerais, formulam o método de
BH,  que  se  constitui  na  mais  significativa  proposta  crítica  do  Serviço  Social  elaborada  nessa  época  no  Brasil,
influenciando o setor mais crítico da profissão, sobretudo aqueles que se encontravam nas universidades.
16  Perry  Anderson  (1998)  considera  que  o  neoliberalismo  constituiu  um  projeto  econômicosocial  e  político
ideológico que nasceu logo da Segunda Guerra Mundial na Europa capitalista e na América do Norte, tendo como
uns dos seus principais expoentes a Friedrich Hayek, o qual somente conseguiu impor a meados da década de 1970,
momento em que entra em crise  o modelo de acumulação, no Brasil este chegará posteriormente. Segundo Draibe
(1998) a instalação do neoliberalismo no Brasil, teve as seguintes características: não constitui um corpo teórico, ele
é uma ideologia com proposições práticas próximas do conservadorismo político e do darwinismo social. Propõe a
liberdade e a primazia do Mercado sobre o Estado assim como a primazia do individual por sobre o coletivo, em fim
tratase de um Estado Mínimo que só deve intervir quando o mercado ou até a sociedade civil não consegue das
respostas à questão social, sobretudo por meio de ações filantrópicas.
17 Nos estamos referindo a pesquisa denominada“ A questão da cultura como uma dimensão constitutiva da produção
de conhecimento e do exercício profissional do assistente social” , financiada pela UFJF e pelo CNPq através de
bolsas de iniciação cientifica, mapeamos a produção teórica acerca desta temática, principalmente na revista Serviço
Social e Sociedade no período de 2000 a 2005 e no XII Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais – CBAS  de
2007. Foram analisados um total de 260 trabalhos, sendo 183 artigos da revista “Serviço Social e Sociedade” da
editora Cortez, e, 77 trabalhos publicados nos ANAIS do XIICBAS.
18 Ao respeito é ilustrativo a análise que faz Eduardo Grüner (2002) no livro El fin de las pequeñas historias. De los
estudios  culturales  al  retorno  (imposible)  de  lo  trágico.    Grüner  faz  uma  crítica  aos  “estudos  culturais”,  já  que
segundo o autor, se mostraram insuficiente para explicar a realidade social, mas sobre tudo perderam a idéia de
totalidade social.  Fatos como o fatídico e condenável 11 de setembro, nos demonstram que não nos encontramos na
“pequena aldeia”, mas sim, num mundo global, que possui fronteiras concretas.

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